Web da perversão
- Joziane Barbosa

- 9 de set. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 19 de out. de 2023

A violência contra a mulher tem milhares de anos, começando com a privação da liberdade e controle do corpo, na Idade Média, até o feminicídio que chegou a acontecer um a cada sete horas no Brasil, em 2021, segundo um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) divulgado em março de 2022.
Esse texto foi escrito por mim e pela Lorrane Mendonça, e postado originalmente no COMUNICA UERJ, um portal de notícias feito pelos estudantes de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
A cultura da objetificação e agressão à mulher é uma questão institucional, e, com o advento das redes sociais, essa estrutura ultrapassou as barreiras do real para o virtual. Foi criada uma indústria de conteúdos nocivos que expõem mulheres mortas, violentadas ou envolvidas em acidentes. Os vídeos e fotos que circulam pela internet são compartilhados em páginas do Facebook, grupos de WhatsApp e em sites da dark web – coletivo de sites que só podem ser acessados com um navegador de internet especializado. As postagens desses conteúdos são acompanhadas de comentários que incitam, além do ódio, a crimes como a necrofilia e o estupro.
A página do Facebook “Festa no IML” foi descoberta após donos de uma funerária no Rio Grande do Sul a denunciarem ao Ministério Público e à Polícia Federal. No grupo, os membros postavam fotos e vídeos de mulheres mortas, assassinadas ou que se suicidaram, registrados e compartilhados dentro dos Institutos Médicos Legais (IMLs), além de piadas referentes à necrofilia. Os comentários nas postagens eram sempre de cunho sexual e de extrema violência.

O Facebook excluiu a página ao concluir que se tratava de conteúdo “cruel e insensível, que violava as regras da comunidade”. Porém, excluir a página não resolve a questão. É preciso entender o que se passa com aqueles que produzem e consomem esse tipo de conteúdo. Mais do que isso, é necessário entender um pouco da história da humanidade e perceber em que lugar o corpo da mulher sempre foi colocado.
Em entrevista para o COMUNICA UERJ, o professor do Instituto de Psicologia da Uerj Alberto Filgueiras explicou o que é a parafilia e as doenças relacionadas a ela. “A parafilia seria qualquer ‘para’ no sentido de fora do padrão e ‘filia’ apaixonamento, amor. Então, seria qualquer comportamento sexualizado ou romântico que seja considerado anormal para aquela sociedade. A necrofilia é um tipo de parafilia na nossa sociedade contemporânea, porque é o desejo, atração sexual pelo corpo de pessoas mortas. A pedofilia também é uma parafilia.”
Filgueiras alertou que qualquer tipo de comportamento humano dependerá do contexto histórico e social em que está inserido. Antigamente, era considerado normal que as mulheres se casassem ainda muito novas. Em civilizações ocidentais, após o Iluminismo, ocorriam histórias de casais em que os homens esperavam a primeira menstruação da mulher para que pudessem consumar sexualmente o casamento. Ou seja, garotas entre nove e 11 anos já estavam casadas e tinham sua vida sexual iniciada, às vezes, contra sua vontade, pois, no imaginário coletivo, a menina já poderia ser considerada adulta após a primeira menstruação.
Vale ressaltar que o casamento com menores de 16 anos no Brasil é proibido desde fevereiro de 2019, e a prática de ato libidinoso ou sexo com menores de 14 anos é crime de estupro de vulnerável. Apesar disso, esses casamentos seguem acontecendo, principalmente quando a menina vive em situação de pobreza, em que o matrimônio passa a ser visto como uma forma de se manter na sociedade. Em casos da perda da virgindade ou gravidez indesejada, o casamento aparece como uma forma de recuperar a honra.
Em dezembro de 2021, a Polícia Federal (PF) realizou a Operação Lobos II para desarticular um grupo que usava a dark web para distribuir material de abuso infantil no Brasil e em outras partes do mundo. A corporação revelou que antes dessa essa operação, ainda durante as investigações, a PF identificou um brasileiro que usava a deep web para hospedar e gerenciar cinco dos maiores sites de abuso sexual infantil no mundo. Esses sites eram utilizados cerca de 1,8 milhão de usuários em todo o mundo, para postar, consumir e compartilhar materiais relacionados à violência sexual contra crianças e adolescentes.
A professora de Psicologia Social na Uerj Jimena de Garay afirmou que a objetificação da mulher é uma cultura enraizada na sociedade. “É uma questão institucional, não no sentido ‘escola’, mas no próprio machismo que atravessa a universidade, a mídia, a família, a igreja” afirmou. “Há momentos em que [esse machismo] é expressado em feminicídios, em estupros. O fato de esses grupos existirem, essas páginas no Facebook, esses sites, é quando os homens compartilham esse desejo da total objetificação da mulher.” Com a existência desses grupos e lugares onde homens se sentem confortáveis para postar e comentar de maneira cruel sobre mulheres, se percebe que não é uma perversão apenas individual, mas compartilhada.
A distribuição de conteúdos da mulher ocorre também quando a mulher termina um relacionamento e seu parceiro não aceita e, por isso, o outro indivíduo divulga e compartilha fotos, vídeos e conteúdos sexuais dessa mulher sem sua autorização, como forma de vingança. Essa prática é conhecida como “a pornografia da vingança”, o que causa danos emocionais e sociais na vitima que foi exposta contra sua vontade. Ainda que o conteúdo tenha sido produzido com o consentimento da mulher durante o relacionamento, não significa que houve autorização para a divulgação.
Na internet, encontramos outros grupos de homens que ridicularizam as mulheres. Esses são os “incels”, celibatários involuntários que são homens solitários com incapacidade de se relacionarem. Esses homens também fogem da masculinidade hegemônica, e criam um ódio profundo pelas mulheres que são chamadas por eles de “stacys”. Os “incels” acreditam firmemente que a felicidade está fora de seu alcance, por culpa das mulheres que não se interessam por eles.
Nesse tipo de fórum, é comum encontrar a ideia de que as mulheres buscam apenas dinheiro, são promíscuas e manipuladoras, e que só se interessam pelos “chads”: que são os homens bem-sucedidos, com boa personalidade, músculos volumosos e cabelo bonito – por isso os “chads” conseguem a atenção das “stacys” e os “incels”, não. Se um dos “incels” tiver contato com mulheres bem-sucedidas, é automaticamente chamado de “falso incel”.
De uma maneira ou de outra, a mulher é sempre a culpada; seja por não dar atenção aos “incels” ou por dar atenção aos “chads”. Por isso, “merecem” ser expostas e violentadas.
Garay explica que a nossa sociedade é baseada nos desejos pelos corpos, não só os das mulheres, mas também pelos dos povos indígenas e africanos, que foram escravizados. O desejo pelos corpos funda as nossas sociedades, inaugura aquilo que se conhece de nações e, mais do que controlar a vida, controla também a morte, quem deve morrer. “Em sociedades tão desiguais, que não tiveram a oportunidade de se entenderem depois que a colonização as deixou, as mulheres devem morrer”, afirmou.
O desejo em volta do sexo com o corpo de mulher morta, vem, socialmente, da falta de capacidade da mulher em responder. “Tiram a agência [capacidade de agir] dela, por que o que acontece com uma mulher morta? Ela não tem agência. Ela não pode se defender. Não pode se colocar no mundo quanto sujeita, por isso dá prazer.”
Segundo Alberto, é muito difícil caracterizar essas atitudes como um transtorno psicológico, pois através do ponto de vista cronológico, a história é multicultural e possui diversos contextos sociais. Um evento ocorrido há 200 anos pode ser problematizado nos dias de hoje. É um processo cultural que se transforma com o passar dos anos. Mas vale lembrar que há um limite. “É claro que, a partir do momento que a pessoa demonstra incapacidade de controlar os seus impulsos e os seus desejos, é um outro tipo de problema, porque esse indivíduo tem problema no controle de impulso. E o controle de impulso faz parte dos transtornos do tipo personalidade, mas isso é porque as pessoas têm dificuldades de controlar o seu impulso, não tem a ver com o fato de o indivíduo ter desejo em criança ou cadáver.”



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